Lisboa, 18 de agosto de 2023 (sexta-feira)
- David Baptista Farto

- 24 de ago. de 2023
- 3 min de leitura
Atualizado: 25 de set. de 2023
Cheguei a Nisa a meio da tarde, depois de uma viagem tranquila na Rede Expressos. Nisa é, em abono da verdade e respeitando o mais estrito sentido de objetividade, uma típica vila do Alto Alentejo sem qualquer atributo especial digno de menção. Factos são factos, e contra estes não há argumento que valha. Aquilo que pode ser considerado na localidade como o “centro nevrálgico” limita-se a um terreiro de gravilha excessivamente grande, ocupado, ao redor, por algumas esplanadas com cadeiras metálicas, pelo posto de turismo e pela biblioteca municipal. No meio, existe um jardim, mas é mínimo e a sua vegetação, pobre e seca, não é suficiente para criar uma sombra suficientemente refrescante. Aliás, sem querer exagerar, o número de árvores e arbustos é tão pequeno, que quase se consegue contar pelos dedos das mãos. À ausência de sombra natural, soma-se o reflexo intenso do sol escaldante no pavimento gravilhoso, criando uma sensação insuportável de calor quase asfixiante. Branco e amarelo são as cores dominantes que pintam a esmagadora maioria dos edifícios. Com a luz do azul infinito do céu, aquilo que não deixa de ser um cenário banal de casario alentejano consegue receber, contudo, um brilho especial e transformar-se num bonito retrato. Embora não tenha a beleza natural de Marvão ou o interesse histórico de Castelo de Vide, há qualquer coisa de inexplicável que faz com que aquele aglomerado pacato de casas caiadas perdido na planície do Alto Alentejo assuma uma graça única e inconfundível.
Depois de o autocarro deixar-me na estação, segui para casa, onde encontrei os meus pais muito entretidos a arrumar umas tralhas no sótão. Por estarem ocupados e não quererem interromper as arrumações, pediram-me para que fosse comprar os bilhetes para o “Nisa em Festa”, evento que ocorre todos os anos no início de agosto, durante as férias dos emigrantes. Sem nada mais interessante para fazer naquele momento e como me apetecia dar um passeio a pé, lá saí para comprar os desejados ingressos festivos. A meia-hora seguinte foi passada a percorrer os sítios onde julgava que pudessem estar instalados os balcões de venda, como o posto de turismo ou, a uns poucos metros de distância, o cine-teatro. Uma vez que estava tudo fechado, resolvi voltar para casa. Nesse preciso momento, quando já estava a dar meia-volta para trás, deparei-me com um atento par de olhos a perscrutar-me com a curiosidade de quem vê um indivíduo que não conhece e com quem quer falar. Ao aperceber-se que eu estaria à procura de algo, um senhor aproximou-se e perguntou-me se eu precisava de alguma informação. Era velho, com idade suficiente para estar já na reforma, relativamente baixo, e vestia uma camisa aos quadradinhos, em cujo bolso do peito tinha guardada uma caneta prateada. Respondi-lhe que sim, que estava à procura do local de venda dos bilhetes para as festas do dia seguinte. “Pois, eu julgo que os balcões só abrem amanhã. Só a partir de amanhã é que pode comprar”, respondeu com simpatia. Agradeci a informação e já estava pronto para retomar o passo, mas o homem, como se estivesse insatisfeito com aquele curto diálogo, quis continuar a conversa e logo de seguida procurou saber de onde eu era. “Ah, é de Lisboa? Sabe, eu trabalhei durante três anos em Lisboa, num escritório na Baixa, mas não me dei bem e acabei por decidir voltar para cá”. Falou-me da mulher e dos filhos que, segundo me lembro, também estavam a trabalhar atualmente na capital. Durante o fluir da conversa, pelo discurso e por algumas referências que foram sendo ditas, percebi que estava perante um homem de cultura. Passados alguns minutos, depois de ter tentado arrancar-me mais algumas informações sobre mim e sobre o que eu fazia da vida, confessou ser colecionador de livros antigos. “Agora, como estou reformado, aproveito para colecionar livros. Dos séculos XVII e XVIII, sobretudo. Com denodado orgulho, acrescentou que o livro mais antigo que possuía naquele momento era uma tradução portuguesa d´”O Livro Tibetano dos Mortos”, que havia adquirido há uns tempos em leilão. Ora aqui está um livro que não se deve encontrar ali nas prateleiras da biblioteca municipal, pensei eu. “O Oriente sempre foi mais avançado que nós, por isso é que é preciso lê-lo, é preciso compreendê-lo”, disse assertivamente, como se me procurasse convencer. À medida que ia falando do livro, os seus olhos cintilavam. Sugeri-lhe que fizesse uma viagem ao Tibete. “Já não tenho idade para isso”, sorriu com aquilo que me pareceu ser um sentimento de pena. Só depois de nos despedirmos, e ir cada um para seu lado, pensei, então, no extraordinário de tudo aquilo, de conhecer alguém que com aquela idade, que nasceu e passou boa fração da sua vida numa pequena vila do interior alentejano, se interessa pela cultura tibetana. Por mais imaginação que tenha, nunca me ocorreu falar em Nisa sobre o Tibete.
(Texto originalmente escrito no dia 18 de agosto de 2023)
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